Influências das redes de poder nas atividades de inteligência O QUE SÃO AS REDES DE PODER? (DR Prof Herbert Espuny)
Considerando que as atividades de Inteligência, ao longo da história, têm uma importante vinculação com o poder, haja vista que tais atividades precisam ser desenvolvidas por setores altamente regulados, a pesquisa vai procurar buscar as possíveis vinculações entre as diferentes redes de poder e as atividades citadas.
Os setores altamente regulados podem ser exemplificados pelos exércitos em todos os tempos (hierarquia e conjunto de normas militares), por certas ordens religiosas ou místicas (regramento interno), por órgãos de governo (legislação do país e regimentos internos) ou determinadas camadas ou extratos sociais que detém parcelas do poder (como a nobreza ou o clero).
RESUMO: O objetivo deste trabalho é mostrar e discutir as possíveis influências oriundas das diferentes redes de poder no trabalho técnico e especializado da produção de conhecimentos de Inteligência. Inicialmente foram abordados alguns conceitos de rede de poder, complementados com alguns exemplos. Foram também definidos os principais preceitos da produção de conhecimento estratégico, tais como a definição do objetivo, a coleta e a busca de dados, a análise, a produção do conhecimento e a apresentação do mesmo. Finalmente foram discutidos alguns episódios nos quais a influência de diferentes redes de poder podem ter contribuído para um resultado não satisfatório ou inadequado daquele ou daqueles que têm a responsabilidade da decisão.
Palavras-chave: Atividades de Inteligência e Poder. Redes de Poder. Interferências na Produção de Conhecimento Estratégico.
SUMÁRIO: 1 . INTRODUÇÃO.2. O QUE SÃO AS REDES DE PODER? 2.1. CONCEITO 2.2. EXEMPLOS DE REDES DE PODER.3. ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA E SUAS ESPECIFICIDADES.3.1. DEFINIÇÃO E CONCEITOS BÁSICOS. 3.2. PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO ESTRATÉGICO. 3.3. PRINCÍPIOS DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA.4. POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS DAS REDES DE PODER NA INTELIGÊNCIA.. 4.1. POLÍTICA E ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA.4.2. RELIGIÕES E ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA.4.3. OUTRAS INFLUÊNCIAS NAS ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Considerando que as atividades de Inteligência, ao longo da história, têm uma importante vinculação com o poder, haja vista que tais atividades precisam ser desenvolvidas por setores altamente regulados, a pesquisa vai procurar buscar as possíveis vinculações entre as diferentes redes de poder e as atividades citadas.
Os setores altamente regulados podem ser exemplificados pelos exércitos em todos os tempos (hierarquia e conjunto de normas militares), por certas ordens religiosas ou místicas (regramento interno), por órgãos de governo (legislação do país e regimentos internos) ou determinadas camadas ou extratos sociais que detém parcelas do poder (como a nobreza ou o clero).
O que se pretende analisar é o quanto tais redes de poder, em tese, poderiam influenciar na eficiência e na eficácia das atividades de Inteligência, uma vez que tais atividades são baseadas em preceitos técnicos que, mais uma vez em tese, não deveriam ser influenciadas por quaisquer vertentes de caráter político ou estarem subordinadas a interesses ilegítimos que não sejam os verdadeiramente ligados ao bem comum das organizações e/ou dos estados que patrocinam tais atividades.
Os preceitos técnicos em tela são aqueles universalmente reconhecidos no âmbito das Atividades de Inteligência, praticados em organizações públicas e privadas no mundo inteiro.
Um dos sinônimos de Atividade de Inteligência é Informação Estratégica. Apesar da atividade de inteligência existir desde os tempos mais remotos, a produção de informações estratégicas “numa escala abrangente e numa forma sistemática, na paz e na guerra, não é mais antiga que a Segunda Guerra Mundial” (PLATT,1974, p.20). Portanto, a prática atual da Inteligência está muito ligada à Gestão do Conhecimento no que concerne às técnicas específicas para assessorar a tomada de decisões. Como lembram Angeloni e Fiates (2008, p.33):
A tomada de decisão em uma organização, independente de setor ou porte, é um processo muito importante e delicado, pois o futuro da organização depende das ações tomadas no presente. Por isso, o processo de tomada de decisão não pode ser algo aleatório, impensado, simplesmente intuitivo. Ao processo intuitivo de tomada de decisão deve ser agregada uma análise criteriosa das informações disponíveis.
Ora, se a Atividade de Inteligência se reveste, por princípio, da faculdade de assessorar aquele a quem cabe decidir, a questão que se apresenta como base para a pesquisa em curso está relacionada às possíveis influências que a produção da informação estratégica possa estar suscetível das diferentes redes de poder. Esta suscetibilidade pode estar ligada à tomada de decisões tendo como fundo uma produção de informações falseadas, apenas para servir de apoio à decisão política ou simplesmente interpretações erradas que levem a decisões de má qualidade, por quaisquer razões. De uma forma ou de outra o conhecimento de inteligência acaba influenciado por fatores alheios às técnicas reconhecidas para a sua confecção ou para a sua aplicação.
E tais questões parecem ser importantes no sentido de estabelecer reflexões a respeito da magnitude de suas respostas. Até que ponto erros ou omissões importantes da Atividade de Inteligência estão relacionados com a interferência das redes de poder? É possível identificar, caso ocorram, tais interferências? Apenas para exemplificar, dois fatos na história recente representam estas inquietações: um deles é o ocorrido em 11/09/2001, o famoso atentado terrorista às Torres Gêmeas nos EUA. Como a maior potência nuclear do mundo, com serviços de Inteligência reconhecidamente efetivos pode sucumbir a um atentado planejado por uma rede terrorista do terceiro mundo? Nessa área são bem mais fáceis de serem formuladas as questões que as respostas. Outra questão é aquela na qual a Central Intelligence Agency – CIA apontava como certas as fábricas no Iraque para a produção de armas de destruição em massa.
Ou indo mais diretamente ao ponto, a CIA havia julgado de forma totalmente errônea os programas de armas químicas, biológicas e nucleares de Saddam Husseim. Curveball era o pior caso, mas não estava sozinho. A CIA havia pintado um quadro de condenação do Iraque que possuía somente duas cores: o preto e o mais preto ainda (DROGIN, 2008, p.244).
Toda a pesquisa será desenvolvida bibliograficamente. Considerando a complexidade do assunto, algumas outras considerações são pertinentes.
As atividades de Inteligência, aos poucos, vão se consolidando como área de pesquisa acadêmica. Durante tempos, restrita tão somente aos meios militares ou entre as agências governamentais especializadas neste mister, na década de 70 do século passado, através de trabalhos desenvolvidos em universidades como a de Harvard, nos EUA, preceitos fundamentais começaram a ser explorados e a pesquisa científica, orientada para esta área, foi sensivelmente ampliada. Tais preceitos fundamentaram correntes importantes das atividades de inteligência praticadas nas organizações, como a Inteligência Competitiva, por exemplo, e despontaram autores, hoje famosos, como Michael Porter e obras internacionalmente reconhecidas como Vantagem Competitiva e Estratégia Competitiva (publicadas no Brasil pela editora Elsevier, Rio de Janeiro).
Portanto, antes encoberta por um segredo quase sepulcral, hoje a atividade de inteligência já se constitui em área definida de pesquisa e sua prática é desenvolvida em várias organizações. O que se percebeu é que o conteúdo do conhecimento estratégico deve e precisa ficar em sigilo para o bem das organizações, instituições ou países... Mas o processo da produção do conhecimento de Inteligência poderia ser difundido, estudado e praticado universalmente.
Em geral na grande área de ciências sociais aplicadas, especificamente nas áreas do Direito e da Administração, vários trabalhos acadêmicos deram suporte para os variados ramos da atividade de Inteligência, seja na área pública, seja na área privada, sob as mais diversas denominações, como Inteligência nas Organizações, Inteligência Competitiva, Inteligência Estratégica, dentre outras.
A justificativa para a pesquisa pretendida se estende em três vertentes: a pessoal (motivação para o pesquisador), a relevância para a Academia e a relevância maior, que é a social.
A justificativa pessoal prende-se ao fato de que o pesquisador deste trabalho desenvolve atividades de Inteligência há 12 anos, precisamente desde o ano 2000, na Polícia Civil de São Paulo, e desde 2007, na Corregedoria Geral da Administração – CGA, órgão vinculado à Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo e que tem por responsabilidade desenvolver correções ordinárias e extraordinárias em vários órgãos do governo do estado, e tal pesquisa representa uma conquista na medida em que amplia o conhecimento além da simples doutrina com a qual cotidianamente um analista de Inteligência convive e a aplica;
A justificativa acadêmica está baseada na expectativa de que tal pesquisa possa abrir horizontes no questionamento da amplitude das atividades de Inteligência, identificando, inclusive, possíveis áreas para novas pesquisas;
A justificativa mais ampla é que a sociedade em geral tem o direito de conhecer determinados contextos nos quais as atividades de Inteligência ocorrem, no intuito de compreender melhor determinados fatos da história passada e contemporânea.
2 O QUE SÃO AS REDES DE PODER?
2.1. CONCEITO
Embora o objetivo principal deste trabalho não seja analisar as questões relativas ao poder de forma aprofundada é forçoso estabelecer alguns parâmetros e relembrar algumas definições para que o conceito de redes de poder possa se estabelecer.
De uma forma geral, o poder sempre foi estudado pelos mais diferentes ramos do conhecimento. A História nos dá conta das mais diferentes organizações do poder nos setores religiosos e políticos em todos os tempos. Desde os tempos mais remotos já havia formas de organização, ou seja, regras de convivência, que só poderiam ser aplicadas por aqueles que detivessem o poder, pois a aplicação de tais regras levava em conta a capacidade de forçar os resistentes a onseq-las e, em último caso, a capacidade de punir aqueles que se recusavam a segui-las. E tal estado de coisas tornou-se evidente com o surgimento das cidades, pois a convivência obrigava à formulação de regras.
Um dos mais antigos sistemas de regramento foi o Código de Hamurabi. Como ensina Queriquelli (2010, p.20):
O Código de Hamurabi constitui um marco na história universal, especialmente no que diz respeito ao direito e, consequentemente, à política. Representou o ponto alto dos primeiros esforços da humanidade na busca de garantir paz, justiça e ordem à convivência entre os homens.Apesar das sociedades estabelecerem uma série de regras, o homem sempre foi atraído pelo poder. E aquilo que representa o poder não é exatamente suficiente para suprir a todos os homens, de modo que disputas das mais variadas espécies permearam a história humana.Sendo assim, uma vez que as pessoas acabam por desejar os mesmos bens, e uma vez que os bens não são suficientes para todos, elas acabam sempre e novamente por entrar em conflito. Há três bens decisivos, especialmente no que diz respeito ao poder: Riqueza, Honra e Mando (QUERIQUELLI, 2010, p.79).
E é natural que tais disputas sejam desenvolvidas por homens aliados a outros homens que desfrutam da mesma concepção política, religiosa ou social. Estas formas de união, privilegiando tais laços, contra outros que possuem concepções diferentes é que, para os fins deste trabalho, podem ser classificadas como redes de poder.
2.2. EXEMPLOS DE REDES DE PODER
Estas redes de poder estão difundidas nas sociedades a ponto de ganharem uma espécie de vida própria, em oposição à ideia clássica de um ser que personifica o poder. Tal ideia, abordada por Foucault, faz refletir no sentido de que as complexas redes de poder acabam sendo estabelecidas em função de uma dinâmica própria.
Creio que isto nos permite compreender agora a teoria do poder em Foucault. Ele opõe uma concepção do poder como um conjunto de forças materiais que se concentra no centro da sociedade, e se irradia de forma intermitente em direção à periferia, mediante espasmos que se desencadeiam para submeter aos bons súditos e esmagar os insubmissos; que funciona negativamente, por confisco e por coleta; a uma concepção do poder como relação assimétrica entre indivíduos, entre grupos, que se irradia da periferia para o centro, de baixo para cima, que se exerce permanentemente, dando sustentação à autoridade, e que funciona positivamente, dinamizando, incrementando as forças e recursos existentes.
Assim, em vez de coisas, o poder é um conjunto de relações; em vez de derivar de uma superioridade, o poder produz a assimetria; em vez de se exercer de forma intermitente, ele se exerce permanentemente; em vez de agir de cima para baixo, submetendo, ele se irradia de baixo para cima, sustentando as instâncias de autoridade; em vez de esmagar e confiscar, ele incentiva e faz produzir (ALBUQUERQUE, 1995, pp.108-109).
E, tal dinâmica acaba por criar certo paradigma capaz de nortear aquilo que conhecemos como verdade. Para reforçar tal ideia, o próprio Foucault contextualiza:
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e suas funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder (FOUCAULT, 2008, p.12).
Outra ideia decorrente das diversas conotações do poder está relacionada ao contexto:
O poder sempre depende do contexto. A criança que domina o playground pode se tornar lenta quando toca o sinal do fim do recreio e o contexto muda para uma sala de aula bem ordenada. Em meados do século XX, Joseph Stálin perguntou desdenhosamente quantas divisões o papa possuía, mas, no contexto das ideias, cinco décadas mais tarde, o papado tinha sobrevivido, enquanto o império de Stálin sucumbira (FOUCAULT, 2008, pp.15-16).
Portanto, o exercício do poder depende de inúmeros contextos e circunstâncias que podem estar relacionados às mais diferentes vertentes e contextos: numa sala de aula enquanto o professor ali estiver as relações de poder são diferentes de quando, por exemplo, ali estiverem somente os alunos.
Cotidianamente pode-se observar esta realidade através de alguns exemplos básicos: o policial armado, num patrulhamento nas ruas, exerce – naquele momento – todo o poder da instituição a que está ligado, independentemente de toda uma cadeia hierárquica, não presente naquele hipotético momento. Em que pese todo o treinamento anterior, uma boa parcela em relação às interpretações dos fatos que se sucedem bem como as possíveis reações ficará à cargo de uma certa subjetividade. Da mesma forma, um professor em sala de aula, independentemente de todo o regulamento da escola e dos preceitos maiores do ordenamento educacional, decidirá – em ocorrência específica – se aceitará ou não, de um aluno, uma lição entregue intempestivamente ou se punirá ou não determinado aluno por certa atitude inadequada.
Dentre esses e tantos outros contextos nos quais o poder pode influenciar, mudar, criar ou desfazer realidades estão o que podem ser chamadas de redes de poder. Tais redes podem ser secretas ou não, podem ter a sua atuação perfeitamente identificada ou agir sub-repticiamente.
Num presídio existem exemplos que contemplam o que foi exposto acima. Há o poder perfeitamente identificado que começa com as leis que determinam o funcionamento do estabelecimento penal, passa pela autoridade do diretor da prisão, pelas decisões emanadas dos juízes que condenou e do que acompanha a execução penal e pelos agentes que compõe a organização como um todo. O sistema é regulado por normas internas e seus funcionários tem o poder de manter tal ordem e de punir aqueles que a ela não observam. Contudo, há outra fonte de poder gerada entre a própria população carcerária, fonte está que deriva do preso mais influente e que possui todo um código de conduta não estabelecido nos regulamentos internos. Além disso, outros rituais, procedimentos e códigos, cercados de segredos e só acessíveis aos iniciados, fazem parte da vida atrás das grades:
A exemplo das gírias, as tatuagens feitas na cadeia são uma forma de identificação dos presos. Mostram a personalidade de quem as usa. Essas tatuagens – feitas de forma grosseira, ao contrário dos modelos criados por tatuadores profissionais – indicam se o preso é perigoso, digno de confiança ou se possui tatuagem como simples adereço.Outros tipos de comunicação usados pelos reeducandos, são a mímica (linguagem dos surdos-mudos), sinais de toalha, espelho e à noite, isqueiro. Eles “conversam” de um pavilhão para outro e até namoram – quando há, lado a lado, presídios masculino e feminino.Esses códigos, porém, são considerados secretos e nenhum detento se presta a onseq-los (RODRIGUES, 2001, p.66).
Dessa forma é possível entender o poder dentro de um determinado contexto. Um preso inexperiente, que desconhece tais códigos tem bem menos poder que um que domina o ambiente, sabe como se comportar e pode ter ideia aproximada do que esperar numa situação ou outra.
E tal situação se repete em outras circunstâncias. Por exemplo, em comunidades dominadas pela criminalidade, as instâncias oficiais de poder não possuem, na prática, a mesma efetividade do “poder paralelo”:
Quando o Comando Vermelho assumiu o controle de quase 70% dos pontos-de-vendas de drogas, se constituiu numa espécie de governo paralelo das comunidades pobres. O “dono do morro” é também o juiz e o prefeito da área controlada. Até mesmo o sobe-e-desce das pessoas é feito sob vigilância armada. O chefe do tráfico tem poderes quase absolutos, incontestáveis (AMORIM, 2003, p.280).
Portanto as redes de poder podem ser formadas das mais diferentes formas e nos mais diferentes níveis. Podem ser formadas através de associações profissionais, através de cultos religiosos e de interesses diversos. Podem ser desenvolvidas através de associações oficiais, explícitas e conhecidas ou, ao contrário, através de associações secretas, desconhecidas do grande público. Podem ter como motivação questões políticas, sociais, religiosas, ocultistas ou criminosas. Não é por acaso que em certas partes do mundo alguns grupos justificam determinadas ações com base em preceitos não exatamente racionais. Como lembra Allegretti (2010, p.25): “A tradição das confrarias árabes ainda repercute no contexto do poder. Desde o século XI até a atualidade, podemos encontrar uma infinidade de casos em que o misticismo, a mistificação e o poder andam de mãos dadas”.
Outras vezes, a capacidade de mobilização e a manutenção de certos segredos entre os indivíduos do grupo a que pertencem, ou ainda suas habilidades específicas, representavam a diferença entre a sobrevivência e a morte. “Em suas guerras fora da Europa, em especial nas florestas norte-americanas, onde índios aliados conheciam intimamente o terreno e eram mestres na arte do reconhecimento e da surpresa, os exércitos europeus sofriam derrotas surpreendentes nas profundezas dos bosques” (KEEGAN, 2006, p.34).
O que se depreende é que a organização de determinados segmentos, por motivações sociais, profissionais, políticas, religiosas ou econômicas pode criar redes de poder nas quais determinadas informações podem gerar decisões que as privilegiem.
De toda forma, o cotidiano propicia diversas materializações do que se consideram as redes de poder. De forma difusa, espalhado por várias instâncias, o poder está sempre contextualizado em múltiplas vertentes.
Em uma organização moderna , não se tem apenas o patrão e seus ajudantes imediatos como representantes de poder, mas uma ampla rede de poderes intermediários, controlados por chefes, gerentes, coordenadores e encarregados. Tem-se um sistema de poder, forte e articulado, no qual o poder está difuso e espalhado, ainda que não deixe de permanecer concentrado. Quanto mais a modernidade se radicalizou, aliás, mais as organizações foram ficando “descentralizadas”. O avanço dos conhecimentos, o desenvolvimento econômico, o crescimento da população, o aumento da divisão do trabalho e a multiplicação das exigências técnicas impulsionaram a diversificação funcional das organizações (NOGUEIRA, 2008, p.49).
E tais redes de poder, muitas vezes, podem interferir de forma não oficial em aspectos, decisões, planos e arranjos. Exemplos desse tipo de situação multiplicam-se na História. Um exemplo se materializa através do comportamento corporativista: membros de uma certa associação, profissão ou segmento naturalmente tendem a interpretam os erros de seus pares de forma mais branda. Evidentemente que generalizações são sempre perigosas... Mas há certo entendimento de que determinados setores podem ser mais corporativistas.
No âmbito das operações de Inteligência tal corporativismo também costuma ocorrer. Um exemplo clássico é o corporativismo existente entre as agências de Inteligência, de origem militar ou civil.
Os agentes da CIA , em contrapartida, viam seus rivais militares como apegados demais a regras e rígidos demais quanto ao que pensavam. Eles tachavam os relatórios da DIA como não confiáveis e diziam que a experiência de seus agentes era amadora (DROGIN, 2008, p.48).
O trecho acima descreve o corporativismo em ação quando na relação de duas agências de Inteligência americanas: a primeira, a Central Intelligence Agency – CIA, de caráter civil e a DIA – Defense Intelligence Agency, de caráter militar.
3 ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA E SUAS ESPECIFICIDADES
3.1. DEFINIÇÃO E CONCEITOS BÁSICOS
As Atividades de Inteligência, no sentido mais lato, existem desde o início dos tempos. Os antigos guerreiros utilizavam espiões para conseguirem saber das posições, número de homens e armamentos de seus inimigos.
Desde os tempos mais remotos, os líderes militares sempre procuraram obter informações sobre o inimigo, seus pontos fortes, suas debilidades, suas intenções e sua organização bélica. Visitantes estrangeiros vindos de terras que mais tarde Alexandre, o Grande, conquistaria recordam a insistência de suas perguntas a respeito do tamanho da população em seus países, da produtividade do solo, da direção dos rios e estradas que os atravessavam, da localização das cidades, baías e praças fortificadoras e da identidade dos cidadãos importantes(...) (KEEGAN, 2006, p.25).
Tais dados eram fundamentais para que fossem planejadas as operações que resultariam nas conquistas futuras. O elemento que conhecemos hoje como agente de inteligência esteve presente em vários contextos históricos:
Las cartas asirias fechadas em el siglo VII a.C. mustran, por ejemplo, la actuación de pastores como confidentes, informes de desertores del ejército enemigo, así como la presencia de um oficial de información entre el conjunto de tropas que componían el contingente com el que la corte asiria pasaría al país de Mazamua (em la antigua Persia) (NAVARRO, 2009, p.39).
No decorrer da História, várias situações ficaram caracterizadas como próprias destas atividades sempre lembradas como de espionagem, mas indubitavelmente consideradas como estratégicas. O foco principal sempre foi o de obter segredos... Obter determinados dados nem sempre disponibilizados publicamente... Obter dados que fariam diferença na condução de uma batalha, muitas vezes da própria guerra...
Cabem aqui alguns conceitos fundamentais da área de Inteligência para uma perfeita compreensão do texto:
DADO: É o elemento sem qualquer tratamento. Um dado é uma situação, um fato que chegou ao analista de Inteligência sem o aval de qualquer órgão de Inteligência. É o que pode ser chamada de informação não confirmada.
INFORMAÇÃO: O termo informação, para o pessoal de Inteligência, refere-se ao fato ou situação já verificada. Ou seja, enquanto o dado pode ser um boato, a informação já foi checada seja pelo próprio órgão de Inteligência, seja por algum órgão congênere.
CONHECIMENTO: O conhecimento é a produção do órgão de Inteligência. São as informações submetidas a determinados processos de análise que produzem o conhecimento de Inteligência. Tal conhecimento, depois de devidamente apresentado, ou seja, colocado em parâmetros que possa ser lido ou estudado (um power point, por exemplo) por aquele ou aqueles quem têm o dever de tomar decisões, se constitui na razão principal de toda a Atividade de Inteligência.
3.2. PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO ESTRATÉGICO
Um conhecimento produzido por uma agência de Inteligência é sempre considerado seguro e confiável. Tem tais características porque passou por um tratamento adequado que lhe conferiu tal segurança e tal confiabilidade.
O processo de produção do conhecimento de Inteligência passa por cinco fases principais:
a) DEFINIÇÃO DO PROBLEMA;
b) COLETA E BUSCA DE DADOS E INFORMAÇÕES;
c) ANÁLISE DO MATERIAL OBTIDO;
d) PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO;
e) APRESENTAÇÃO.
DEFINIÇÃO DO PROBLEMA: Esta é uma fase importante de todo o trabalho, pois permitirá ao analista determinar o foco inicial de todo o trabalho. Algumas agências podem chamar esta fase de Planejamento. A Polícia Civil de São Paulo, por exemplo, ensina:
Portanto, sinteticamente, temos como etapas do planejamento do conhecimento:1. Delimitação do tema com seus aspectos essenciais, conhecidos e a conhecer;2. Definição do Objetivo, estabelecendo qual o resultado que se pretende com o texto, aquilo que se busca que o leitor compreenda;3. Seleção de Ideias capazes de sustentar o texto, já que podemos utilizar vários recursos para fundamentar a exposição como argumentos, exemplos, comparações, etc.(POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2002, p.125).
Ou seja, esta é a fase na qual os elementos devem ser bem escolhidos, pois o trabalho vai ser fundamentado nesta identificação inicial. Se o objetivo é identificar um traficante de armas não há sentido em redigir missões para o pessoal de operações chamando a atenção para outras incidências criminais, como por exemplo, furtos a residências.
Outros autores dividem esta fase em outras, com nomenclaturas diferentes. O grande mestre Platt desdobra tal fase em outras duas:
Levantamento Geral. Um levantamento do problema completo e dos campos adjacentes onde se pode colher algum auxílio. Plano geral para a conduta do trabalho, incluindo prazo, pessoal e principais fontes de informes julgadas disponíveis. (...). A compreensão, o discernimento, o senso comum e o realismo, aplicados, desde o início, a este planejamento e levantamento geral, exercerão influência poderosa no sucesso do projeto como um todo.Definição dos Termos: É essencial uma definição e explicação do que queremos, ou não queremos, dizer com cada termo ou conceito, deixando tudo bem claro, para nós mesmos, para nossos revisores e para nossos clientes.(PLATT, 1974, pp.102-103).
A fundamentação inicial do trabalho em Inteligência depende de uma boa definição do problema, com todos os elementos bem delineados. Um trabalho desfocado, sem os devidos parâmetros iniciais, pode gerar uma produção de conhecimento ineficaz ou ineficiente.
COLETA E BUSCA DE DADOS E INFORMAÇÕES: Esta é a fase na qual são reunidos os elementos que subsidiarão as analises de Inteligência. Os dados são todos aqueles pertinentes ao conhecimento que se pretenda produzir.
De uma forma geral, coleta define o aproveitamento de dados e informações que estejam à mão, publicadas em fontes oficiais ou não. São obtidas em publicações especializadas, em consultas aos arquivos da própria organização, dentre outros.
Já a busca é uma operação especializada. Consiste em se obter a informação ou o dado protegido, cujo acesso é protegido. É o chamado dado negado. Todo o romantismo e a ação dos filmes de espionagem e de agentes secretos, em última análise, são baseados no dado negado: é o esforço máximo que uma agência de Inteligência precisa fazer para obter a complementação necessária para produzir o conhecimento.
A polícia Civil de São Paulo classifica esta fase como a de Reunião:
Nesta fase busca-se a coleta de material e de dados, que pode ser feita de diversas formas:1) Consulta aos arquivos do órgão de inteligência;2) pesquisas de dados através de contatos, quando os dados são obtidos através de outra pessoa; estudos e ligações, que ocorrem quando o profissional de inteligência busca informações junto a uma congênere, através de pedido de busca (PB) dos conhecimentos constantes de seus arquivos;3) Acionamento do elemento operacional, por intermédio de solicitação a colegas que produzam relatório com as informações requeridas(POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2002, p.125).
O especialista internacional Washington Platt afirma que a coleta pode ser feita onde quer que estejam os dados, inclusive em outros países (PLATT, 1974, p.108). A mais completa reunião possível de dados e informações propiciam uma análise de Inteligência adequada.
ANÁLISE DO MATERIAL OBTIDO: Nesta fase entra o trabalho do analista de Inteligência. Com todos os dados e informações reunidos começa, então, a montagem do grande quebra-cabeça. Como leciona Platt:
Este título é pequeno diante do vulto do trabalho e estudo a realizar com os informes, para tirar o que contem e observar o progresso e as limitações do nosso trabalho, à medida em que avança. Esta fase inclui avaliação, classificação, análise e interpretação dos informes. Algumas vezes, os dados podem ser proveitosamente transformados em gráficos, submetidos à análise estatística etc.(PLATT, 1974, p.104).
Informes, no contexto das observações de Platt deve ser interpretado como dados e informações até então obtidas. A Polícia Civil de São Paulo nomeia esta fase como a de “Análise e Síntese”, nomenclatura bastante interessante se for considerada a etimologia da palavra análise. O dicionário digital Aulete explica que o vocábulo análise (a.ná.li.se) é um substantivo feminino que possui três significados: “1. Estudo de um todo pelo exame de suas partes: análise de uma amostra de sangue; análise de um texto; 2. O resultado desse estudo; 3. Exame, avaliação, crítica” (IDICIONÁRIO AULETE). A ideia central é o decompor as partes para melhor onseq-las. E, posteriormente, novamente reuni-las para produzir o conhecimento desejado. Por este princípio é que o analista de Inteligência se utiliza de várias partes obtidas nas mais diferentes fontes e, então, monta o quebra-cabeça do conhecimento.
(...) A avaliação de dados é o processo a que são submetidos os dados de interesse para o exercício da atividade de inteligência, compreendendo o julgamento da fonte e do conteúdo dos dados obtidos.Nessa fase se procede à estruturação daquilo que foi escolhido como assunto, para conhecimentos e dados obtidos, decompondo-os em frações significativas e, em seguida, estabelecer a credibilidade das informações por ocasião da sua formalização, através de recursos de linguagem que expressem o estado de certeza ou de opinião do profissional de inteligência (POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2002, p.126).
Apesar de não ser o objetivo deste trabalho um aprofundamento na doutrina de Inteligência, é importante o estabelecimento de alguns preceitos que facilitem a compreensão geral. Quando o analista de Inteligência estabelece a credibilidade das fontes ele atribui uma gradação que pode incluir desde uma fonte totalmente qualificada até aquela que não é digna de qualquer crédito. Se um analista for atribuir a credibilidade de uma opinião de um engenheiro eletricista a respeito das instalações elétricas de um determinado local vistoriado por ele, será uma avaliação diferente de uma opinião de um corretor, por exemplo, que queira vender o local. Estas avaliações de credibilidade são importantíssimas na hora de produzir o conhecimento de Inteligência, pois fornecem os subsídios para tanto.
Já quando se fala em estado de opinião ou certeza é a prevalência de status em que se encontra a informação trabalhada. Quando o analista emite uma opinião ele expressa o resultado de seu convencimento a respeito do material analisado. Ele informa uma direção, uma forte possibilidade em relação a uma situação, pessoa ou acontecimento. Diferentemente da certeza, em que o analista não tem dúvidas da realidade apontada. O resultado do estado mental do analista em relação ao conhecimento produzido, vai determinar, inclusive, o tipo de conhecimento.
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: Há três tipos de conhecimento que podem ser produzidos pela Inteligência. Como ensina Ferro Júnior (2008, p.39):
Conhecimento Descritivo: O Conhecimento Descritivo é resultante do processamento das informações confirmadas sobre determinado assunto, das quais se tem convicção, finalizado por uma conclusão baseada nos aspectos que o integram e que sejam pertinentes para a ação organizacional.
Conhecimento Avaliativo: O Conhecimento Avaliativo é o resultante do processamento de informações disponíveis e/ou do conhecimento do próprio profissional de Inteligência de Segurança Pública sobre determinado assunto, conhecimento no qual são apreciados um fato ou situação e seus desdobramentos numa faixa de tempo e espaço.
Conhecimento Estimativo: O Conhecimento Estimativo é resultante do processamento de informações disponíveis sobre fato ou situação, no qual se projetam cenários futuros e hipóteses quanto à sua evolução a curto, médio ou longo prazo, no qual se pode realizar diagnósticos e sugerir prognósticos acerca de um fenômeno.
De acordo com o grau de certeza que o analista possui de determinado assunto é emitido o documento pertinente.
APRESENTAÇÃO: Nesta parte o conhecimento produzido é apresentado. De acordo com o tipo do documento, aquele que é o responsável pelas decisões pode ter uma ideia do grau de certeza da agência sobre o assunto. Como ensinam Lento e Schauffert (2008, pp.108-109):INFORME: elaborado pelo profissional de inteligência, expressa seu estado de certeza ou de opinião frente à verdade sobre fatos ou situação passados e/ou presentes; não ultrapassa os limites do juízo e requer do profissional de inteligência capacidade de julgamento, análise e síntese; (...) narrativa apenas no pretérito ou no presente sem traduzir qualquer tipo de evolução futura;INFORMAÇÃO: elaborado por profissional de inteligência resultante de raciocínio, expressa estado de certeza frente à verdade sobre fato ou situação passados e/ou presentes; (...) não comporta qualquer tipo de projeção dos fatos ou situações futuras.APRECIAÇÃO: resultante de raciocínio elaborado pelo profissional de inteligência, expressa opinião sobre fato ou situação passados e/ou presentes; difere-se da informação pelo fato de expressar uma opinião e não estado de certeza como é na informação; eESTIMATIVA: resultante de raciocínio elaborado pelo profissional de inteligência, expressa seu estado de opinião frente à verdade, sobre a evolução futura de um fato ou de uma situação; requer raciocínio prospectivo e conhecimento compatível com a complexidade da técnica de previsão.
3.3. PRINCÍPIOS DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
Além das características já apresentadas, as atividades de Inteligência primam por seguirem princípios importantes que constituem parte da doutrina de Inteligência. Autores como Lento e Schauffert (2008, pp.130-131) e o Manual Operacional da Polícia Civil do Estado de São Paulo (2002, p.121) especificam, dentre outros:
OPORTUNIDADE: O tempo necessário para aprofundar um estudo nem sempre é o tempo que a agência tem para subsidiar uma determinada operação. É necessário que o analista tenha em mente que a tempestividade das ações é tão importante quanto a própria ação. Uma ação desenvolvida fora de seu tempo pode – ao invés de ajudar – prejudicar todo um trabalho.SIMPLICIDADE: Desde que a Segurança seja totalmente atendida, o princípio da simplicidade implica em economizar recursos estabelecendo os caminhos mais simples para a execução das ações.OBJETIVIDADE: O objetivo das ações é a produção do conhecimento. Todos os atos devem seguir esta diretriz e estarem tão somente focados neste objetivo.SEGURANÇA: Princípio importante, procura resguardar a integridade da agência de Inteligência, seus integrantes e o sigilo de sua missão.
4 POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS DAS REDES DE PODER NA INTELIGÊNCIA
4.1. POLÍTICA E ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA
Um dos maiores fiascos contemporâneos da Atividade de Inteligência reside no fato de não ter sido encontradas quaisquer armas de destruição em massa no território do Iraque, invadido pelos EUA. Uma discussão bastante divulgada, tanto pelo público especializado quanto pelo público leigo, é a de que tal fiasco não foi senão a onsequência de uma “armação” para que o Iraque fosse invadido de qualquer maneira. Portanto, a existência ou não das armas acima citadas não passaria de uma desculpa para justificar a operação. Apesar de possível, tal raciocínio não parece muito lógico: várias outras desculpas poderiam ser utilizadas sem que envolvessem a maior agência de Inteligência americana, a CIA. De qualquer forma, sendo a justificativa uma mera desculpa para a guerra que se seguiu ou não, o que se constata pelas fontes disponíveis é que ao não encontrar quaisquer armas de destruição em massa, os EUA protagonizaram mais um episódio que expôs, negativamente, a Inteligência do país.
Em apertada síntese, parece que o maior problema foi a produção de conhecimento de Inteligência baseada tão somente numa única fonte. Internacionalmente, o conhecimento de Inteligência não pode ser produzido baseado numa única fonte haja vista que a análise tem como parâmetro o cruzamento de diversas fontes, das mais variadas espécies. E, principalmente, em assuntos de importância internacional esta regra é rigorosamente aplicada. É verdade, também, que o contexto geral da problemática precisa ser levado em consideração: obter dados e/ou informações de boa qualidade, em algumas regiões do globo, não é tarefa fácil. Talvez em função disso é que o informante curveball[1] tenha adquirido tamanha relevância. Tal informante, supostamente engenheiro iraquiano, pretendendo ter algumas regalias como refugiado na Alemanha, passou a descrever ao serviço secreto alemão, supostas fábricas de armas de destruição em massa em território alemão. Repassados os dados obtidos para a CIA, a agência de Inteligência americana, fez um contraponto às declarações, afirmando que escaneamentos feitos por satélites em território iraquiano não haviam identificado plantas de fábricas com as características informadas. O informante iraquiano confrontado, afirmou que tais fábricas estavam abrigadas em caminhões que permanentemente rodavam pelo território iraquiano, dificultando tanto a localização das mesmas, como suas possíveis destruições. Tais argumentos convenceram os americanos, pelo menos até onde se sabe e foi relatado.
As acusações de Ahmed Alwan Rafid (conhecido pelo codinome Curveball) davam conta de que o Iraque possuía estoques de armas biológicas em fábricas móveis, razões estas que se constituíram em parte principal da justificativa dos EUA para a invasão, segundo declarações do Secretário de Estado Colin L. Powell, no Conselho de Segurança da ONU, em 5 de fevereiro de 2003.[2] (THE NATIONAL SECURITY ARCHIVE, 2007).
Parece que o caso em questão sugere duas interpretações possíveis: a primeira é a divergência entre os interesses políticos e as possíveis direções que a Inteligência pode indicar. O segundo é a falha na produção de conhecimento de Inteligência.
A primeira interpretação prende-se ao fato de que os interesses políticos são multivariados. Podem coincidir ou não com as indicações da produção de conhecimentos estratégicos.
Em assuntos que as suas diferentes orientações são complementares inteligência e política colaboram tranquilamente. Todavia, é geralmente nos mais importantes tópicos, aqueles envolvendo controversas escolhas políticas, que a relação entre as duas tribos é abalada ( AMBROS, 2010, p.31).
Principalmente quando as coisas são relacionadas a assuntos sensíveis, de alta complexidade ou de searas que envolvem interesses variados. E as especificidades da área de Inteligência propiciam, ainda, posturas que – respeitando os parâmetros técnicos da produção de Inteligência – acabam distanciando os profissionais de Inteligência, na maior parte das vezes, daqueles que efetivamente decidem baseados nesse mesmo conhecimento. Parecem compartimentos estanques, vasos incomunicáveis, e tão somente assumem tal forma por uma questão enfatizada na própria doutrina de Inteligência.
Ou seja, produção de Inteligência encomendada parece funcionar de forma que a interessada principal (quem encomenda) recebe o produto pronto e decide o que fazer com ele:
Na área dos Estudos de Inteligência, muitos autores e pesquisadores não consideram os tomadores de decisões como parte do processo da Inteligência, afirmando que o ciclo de inteligência está completo uma vez que ela chega ao seu consumidor final (a comunidade política), que geralmente está somente associada ao início (requisições) e ao fim (consumo) do ciclo. Ou seja, deste ponto de vista, a Inteligência é um processo isento da esfera política ( AMBROS, 2010, p.28).
Além disso, sendo a esfera política a que se serve dos se4rviços de Inteligência, os interesses podem divergir, apesar do objetivo, em tese, estar sempre ligado ao bem comum do país e da sociedade em geral.
Pragmáticos, os oficiais de inteligência geralmente impõem os seus limites dentro daquilo que é possível, ao contrário da comunidade política que estabelece limites dentro daquilo que elas querem alcançar. Estas funções não são fáceis de se manterem separadas, sendo que a diferença nas responsabilidades das duas comunidades desenvolve diferentes perspectivas, atitudes, prioridades e comportamentos. A essência desta lógica é que tanto os oficiais de inteligência quanto os políticos estão certos dentro do papel proposto a cada uma delas no sistema, entretanto, esta diferença básica impacta diretamente no relacionamento entre as duas comunidades, além de criar fatores que tendem a fazer com que o sistema falhe.
O fato de o governo não ser uma organização monolítica ajuda a explicar porque os tomadores de decisão e os oficiais de inteligência têm diferentes interesses. De uma perspectiva macro, todos buscam o mesmo objetivo – sucesso nas políticas de segurança nacional -, todavia, o sucesso pode significar coisas diferentes para cada comunidade (AMBROS, 2010, pp.31-32).
Mas tal dinâmica não justifica todos os problemas relacionados à área. A obtenção de dados negados, ou seja, aqueles que não são de fácil acesso sempre foram alvo das maiores especulações. Operações de vários matizes, oficiais ou não, deram origem a uma série de reportagens, livros e documentários refletindo detalhes de tais operações. Várias obras de ficção foram criadas levando em conta tais atividades.
A agência governamental mais famosa nessas práticas possivelmente é a americana CIA. Sua fama é internacional e o número de operações em que se envolve é objeto dos mais variados estudos e pesquisas, além de considerações e especulações. Conhecida como a “rainha das agências de Inteligência”, muitas vezes protagoniza as ações cuja alimentação pode ter sido oriunda de outras do sistema americano, como a DIA. Mas, de qualquer forma, a CIA aparece quase sempre no “centro do furacão”:
A partir de sua agência de inteligência externa, a CIA, os americanos intervieram em distintas partes do globo, alterando o destino de nações inteiras. Tentativas de assassinato, sabotagem, planejamento de golpes militares, criação de movimentos políticos, financiamento de partidos, assassinatos. Tudo isso e muito mais. Dezenas foram os países atingidos, que vão da Itália, com o financiamento da democracia cristã em 1948 contra os comunistas, passando pelo oriente médio com a derrubada do governo democraticamente eleito do Irã em 1953, pela América central com o golpe militar na Guatemala em 1954 e a fracassada tentativa de invasão de Cuba em 1963. Diga-se de passagem, que as tentativas de assassinar Fidel Castro contam-se na casa das dezenas. Na América do Sul a CIA financiou os adversários de Jânio Quadros nas eleições de 1962 e depois planejou e deu garantias ao golpe militar de 1964. Depois vieram as quarteladas no Uruguai, em 1973, no Chile, em 1973 e Argentina, em 1976. Na África os americanos financiaram as guerras civis, como em Angola e no Congo. Na Ásia sustentaram o governo corrupto do Vietnã do Sul e voltando ao oriente médio financiaram, no combate aos soviéticos, os mesmos radicais islâmicos que por ironia da história hoje enfrentam (BRITO, 2008, p.92).
É importante lembrar, também, que tal dinâmica é decidida nos bastidores da política, em grupos cujas decisões são permeadas de certo viés de urgência e confidencialidade, o que não permite discussões exaustivas a respeito dos temas. E, mais ainda: conveniências políticas podem estar, nos bastidores, como a real motivação na interpretação de certos relatórios de Inteligência.
Um exemplo é a classificação da Venezuela como safe haven[3] pelo Departamento de Estado americano.
É interessante notar que embora o texto supracitado esteja em um relatório que trate de terrorismo, em uma parte que trata dos safe havens ao redor do globo, os argumentos que acusam a Venezuela são baseados na questão do narcotráfico. Tal fato demonstra a falta de evidências empíricas que realmente a Venezuela seja um safe haven do terrorismo internacional. Além disso, infiro que a inclusão da Venezuela dentro dos safe havens do terrorismo internacional responda muito mais a uma questão de conflito ideológico-político entre este país e os EUA, do que uma real ameaça que o país sul-americano suporte o terrorismo (FERREIRA, 2009. P.10).
Independente de ser ou não o que o relatório classifica de safe haven, o simples suscitar de que certa influência política poderia intervir numa classificação própria de Inteligência, demonstra a suscetibilidade a qual toda uma área está efetivamente exposta: as técnicas de produção de conhecimento estratégico muitas vezes são “revogadas” por “interesses maiores”.
Outros problemas relacionados às influências políticas no uso do aparelho de Inteligência (no caso a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN) podem comprometer, inclusive, a credibilidade de toda a atividade. Um exemplo disso foi a chamada operação Satiagraha[4]. Promovida pela Polícia Federal Brasileira, tal operação tinha por objetivo o combate de vários crimes classificados como de “colarinho branco”, envolvendo gente graúda do cenário financeiro brasileiro. Contudo, o sucesso da operação foi comprometido, dentre outras razões, pela utilização indevida – política e não técnica – do aparelho de Inteligência do estado:
A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou todos os procedimentos decorrentes da Operação da Satiagraha da Polícia Federal, inclusive a condenação do banqueiro Daniel Dantas por corrupção ativa. Por três votos a dois, o STJ considerou que a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na operação da PF violou os princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade e do devido processo legal.
“Se a prova é natimorta, passemos desde logo o atestado de óbito, para que ela não seja usada contra nenhum cidadão”, disse o presidente da 5ª Turma, ministro Jorge Mussi, ao dar o voto que desempatou o julgamento.
O relator do caso, desembargador convocado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Adilson Macabu, entendeu que a atuação dos agentes da Abin extrapolou as atribuições legais da agência criada para assessorar a Presidência da República, e aconteceu de forma clandestina. Agentes da agência de inteligência da Presidência foram convocados informalmente para participar das investigações pelo então delegado da Polícia Federal, Protógenes Queiroz, que dirigia a operação (ROCHA, 2011).
Ora, independentemente das intenções do citado delegado, a força de Inteligência não pode ser utilizada meramente pela vontade de quem quer que seja: só pode ser utilizada dentro de um suporte legal, privilegiando os aspectos do “fazer certo” e não tão somente buscando resultados. E aqui cabe relembrar alguns conceitos administrativos referentes à eficiência e à eficácia: apesar de sinônimos, no âmbito da Ciência da Administração, eficiência refere-se, geralmente, aos meios utilizados e eficácia aos resultados obtidos[5]. Ora, a atividade de Inteligência é regida por princípios de eficiência e qualidade indissociáveis do escopo do próprio serviço. Conforme abordado no capítulo 3 (Atividades de Inteligência e suas especificidades), um dos princípios é o da segurança. E lato senso, tal princípio quer dizer não só a segurança do agente envolvido na operação, mas a segurança da instituição que produz Inteligência e, até por extensão, a salvaguarda da própria atividade como um todo. E expor, desnecessariamente, a principal agência brasileira, no caso a ABIN, associando-a a um fracasso operacional motivado pela não observação de preceitos éticos e legais, com certeza, é um desserviço.
Aliás, as influências políticas têm o viés de comprometer os preceitos de qualidade. Uma vez que os interesses deixam de ser técnicos e não mais vinculados aos princípios básicos da atividade de Inteligência, as atitudes podem ser as mais variadas possíveis. Um exemplo é o que aconteceu durante o período da Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Os serviços de Inteligência foram utilizados de forma a atender determinados interesses políticos da época, resultando em operações problemáticas e desastradas.
Um dos órgãos da Ditadura Militar que trabalhou com policiais civis a seu serviço foi o DOI (Destacamento de Operações de Informações). Órgão da Inteligência Brasileira, o destacamento se estabeleceu em todos os estados brasileiros (...). Ao DOI era ligado o CODI (Centro de Operações de Defesa Interna) e a sigla DOI-CODI ficou famosa por reunir setores de inteligência e operações da Ditadura Militar. Em São Paulo, nas dependências do DOI-CODI, foi estabelecida a OBAN (Operação Bandeirante) cujo objetivo específico era o combate à subversão, reunindo equipes de militares e policiais estaduais (civis e militares).
Parece que a unidade da Polícia Civil de São Paulo mais envolvida com o DOI-CODI foi o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), que na época era um órgão estadual (hoje ainda há, em São Paulo, uma unidade policial com o nome de Ordem Política e Social ligada à Polícia Federal). Seu representante mais famoso e controvertido foi o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury (1933-1979), acusado de comandar inúmeras torturas e assassinatos num combate feroz aos militantes de esquerda durante o regime militar (ESPUNY, 2009, p.24).
Uma das operações consideradas problemáticas foi aquela conhecida como “Operação Rio Centro”. Uma ação de Inteligência desastrada que resultou na morte de um dos militares do Exército brasileiro envolvidos, o capitão Sérgio Machado e o sargento Guilherme do Rosário, num estacionamento do Rio Centro, uma casa de shows da cidade do Rio de Janeiro, no dia 01 de maio de 1981. Ao que tudo indica dos relatos históricos, o objetivo da “operação secreta” era causar pânico no local que concentrava milhares de pessoas. Eles estavam num carro Puma:
A dupla, porém, não chegou a sair do carro. Depois de uma tremenda explosão, o sargento Guilherme do Rosário, eviscerado, agonizou e morreu dentro do carro, enquanto o colega ao lado tombou, gravemente ferido. Socorrido, pouco depois, sobreviveria ao golpe, mas o fato não pode ser ocultado da opinião pública. Repercutiu pesadamente. Os militares tentaram criar uma outra história, arquitetando a versão de que eles – os atacantes – teriam sido justiçados por terroristas. O inquérito foi grosseiro e, embora as conclusões fossem divulgadas com estardalhaço, ninguém, acreditou. Era evidente que a dupla estava a serviço, mesmo que por iniciativa própria (MORAIS, 2008, p.201).
Independentemente de estarem agindo por conta própria ou em função de alguma “armação” coletiva, o fato é que a atividade de Inteligência acabou servindo, no mínimo, a interesses não bem identificados.
4.2. RELIGIÕES E ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA
Além da influência política nas atividades de Inteligência, outras influências podem ser verificadas através de outras esferas, como as religiosas e/ou místicas de vários matizes.
Desde os tempos mais remotos, religião e inteligência compartilham atividades. Na Bíblia, “Disse o Senhor a Moisés: envie homens que espionem a terra de Canaã, que eu hei de dar aos filhos de Israel; de cada tribo de seus pais, envie um homem, e cada um desses será um príncipe entre eles”, Velho Testamento, Números 13: 1-2. Apesar de não exatamente sistematizada como produção de conhecimento, a busca de dado negado parece estar bem representada na suposta ordem divina. Aliás, a Igreja Católica sempre foi zelosa na guarda de seus segredos e mistérios:
Os arquivos secretos do Vaticano sempre estiveram envoltos em polêmica. Isso porque a imagem que se tornou comum ao público era a de que possuiriam, como nos arquivos do FBI, informações sobre pessoas de destaque, grupos e seitas que iriam contra as doutrinas da igreja e até provas de que existiriam extraterrestres. Como o acesso sempre foi difícil até mesmo para os acadêmicos que deles necessitavam, muitos espalharam notícias ainda mais capciosas sobre seu verdadeiro conteúdo (COUTO, 2010, p.111).
E, mais, algumas destas religiões ou seitas são capazes de promover verdadeiras “operações secretas” com as mais diversas justificativas.
Um exemplo disso ocorreu no Japão:
No dia 27 de junho de 1994, em Matsumoto (região central do Japão), vários adeptos da seita de Shoko Asahara assassinaram sete pessoas e feriram cerca de trezentas. E na manhã de 20 de março de 1995, extremistas de Aum Shiinrikyo lançaram no sistema de transporte subterrâneo de Tóquio cinco sacos plásticos cheios de gás sarin, atentado que, segundo foi dito, foi meticulosamente planejado para ser consumado em horas de maior afluência de pessoas. Causou um desastre maciço; deixou como saldo doze mortos, quarenta pessoas seriamente afetadas e um número indeterminado de expostos, além de mais de cinco mil pessoas vítimas de intoxicação que precisaram ser encaminhadas aos hospitais mais próximos (ALLEGRITTI, 2010, p.68).
Operações tais, se bem sucedidas, não puderam ser detectadas pelos órgãos de Inteligência da região. As religiões muitas vezes foram protagonistas de verdadeiras “operações de Inteligência” apesar de não incluídas tecnicamente como tais, mas que se pautaram por uma série de preceitos como a departamentalização da atividade, a objetividade, o sigilo e a análise de dados obtidos. Uma destas operações, que teve como ápice a publicação de um livro chamado “Brasil: Nunca Mais”, em 1985, sob a coordenação do arcebispo Dom Paulo de Evaristo Arns e que comprovava, através de relatos obtidos em tribunais brasileiros, a prática de tortura:
Em relação ao Brasil: Nunca Mais – elaborado por uma equipe anônima coordenada pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns –, sua constituição foi marcada pela atuação silenciosa, quase clandestina, de pessoas vinculadas aos setores progressistas da Igreja Católica, que se dedicaram àdenúncia dos desrespeitos aos Direitos Humanos durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Mesmo com a promulgação da Lei de Anistia, em 28 de agosto de 1979, que trouxe à tona relatos interditados durante o período mais repressivo do regime, a memória sobre a tortura, que aos poucos era construída pelo grupo da Arquidiocese de São Paulo, permaneceu subterrânea até o lançamento do Projeto B. A partir do momento da publicização do conteúdo do Brasil: Nunca Mais, essa memória passou a adquirir certa oficialidade, o que levou os militares brasileiros a afirmar, em meados da década de 1990, que haviam vencido a guerra contra a subversão, mas perdido a batalha contra memória (BAUER, 2008, p.15).
Mas, em relação à Inteligência como sistema organizado de produção de conhecimento, a Igreja Católica não só praticou e influenciou tal atividade, mas também criou e mantém um serviço próprio batizado de Santa Aliança:
Em toda a história dos serviços de Inteligência, existe uma que é das mais intrigantes deste mundo subterrâneo e que reflete um mundo quase não existente na mente popular: a história do serviço secreto do Vaticano, ou da Santa Aliança, o serviço de espionagem do Papa. Considerado o mais antigo em funcionamento, é também reconhecido como o melhor do mundo, no aspecto de suas ações clandestinas e do segredo em que suas ações são tratadas (ABIN, 2011 , p.81).
Relatos de estudiosos dão conta de que esse serviço secreto batizado de Santa Aliança conduziu as mais diversas operações de todos os tipos. Ora, se o dogma mais importante do catolicismo consiste no reconhecimento de Deus e na vinda de Seu Filho, Jesus, como representante divino, a fim de salvar os homens, era de se esperar que um serviço secreto ligado a tal sistema de credo promovesse a difusão tão somente dos ensinamentos e procurasse colher dados e informações, no máximo, da concorrência. Contudo, enquanto rede de poder parece que aqueles que mandavam na Santa Aliança foram muito mais longe que isso:
Durante mais de cinco séculos de história, a Santa Aliança participou de várias operações e atentados, inclusive da matança da “noite de São Bartolomeu”, do assassinato de Guilherme de Orange e doRei Henrique IV da França, da Guerra da Sucessão Espanhola, da crise com os cardeais Richelieu e Manzarino da França, do atentado contra o Rei José I de Portugal, da articulação na Revolução Francesa, da ascendência e da queda de Napoleão Bonaparte, da guerra de Secessão Americana, das relações secretas com o Kaise Guilherme II, durante a Primeira Grande Guerra, além de articulações amistosas com Adolf Hitler, na Segunda Grande Guerra, e também apoiou a organização secreta ‘Odessa’, que ajudava na fuga de nazistas da Alemanha, principalmente para a Argentina e o Brasil, a luta contra o grupo terrorista Setembro Negro, em apoio ao Mossad (...) (ABIN, 2011 , p.84-85).
Ora, acima dos superiores interesses doutrinários não há como negar de que as religiões necessitam de espaços, sejam geográficos, sejam políticos, para prosperar e arrebanhar o máximo possível de fiéis. Desta forma, a influência direta sobre os destinos mundanos pode propiciar tal prática de forma tranquila e produtiva, haja vista que as redes religiosas precisam se manter e equilibrar suas finanças tal qual qualquer outra organização. E parece que a Santa Aliança tem servido muito mais a estes últimos interesses que aqueles ligados à espiritualidade.
A propagação da fé católica de forma intensa na mídia, as ações para neutralizar o avanço do comunismo (como estratégia básica de um polonês no pontificado), além de medidas para combater o terrorismo internacional, foram situações da qual a Santa Aliança participou intensamente como ‘a mão secreta do Papa’, incluindo operações escusas e contrarias aos ensinamentos de Cristo.
Hoje, em pleno século XXI, nada pode ser conhecido sobre o serviço secreto do Vaticano, ou a Santa Aliança, por uma razão simples: espionagem, poder, política e, principalmente, religião não devem se misturar, mas com certeza sempre serão assuntos integrados na história da humanidade (ABIN, 2011 , p.86).
O serviço secreto do Vaticano é chamado, atualmente, de “A Entidade” e esta nova denominação já é de domínio público. Com este mesmo título já foi publicado, no exterior, pelo ensaísta e professor universitário Eric Franttini, um livro[6] que trata das peripécias do serviço secreto do vaticano.
O desembargador aposentado, Wálter Fanganiello Maierovitch, num artigo para a Carta Capital, fala abertamente do serviço secreto do Vaticano ao se referir a crimes cometidos em operações encobertas:
O ministro da Justiça, Tarso Genro, repetiu uma lição que se colhe da concepção positivista do Direito Natural e dos tratados e convenções internacionais: torturas e assassinatos não são crimes políticos. À fala de Genro faltou acrescentar que o direito à verdade não pode ser escondido pelos Estados. Nem blindado o acesso à informação, a favorecer, por exemplo, tiranos, agentes assassinos de serviços secretos, quer da KGB, quer da CIA, quer do SNI, quer da “A Entidade”, nome do serviço secreto do Vaticano. (MAIEROVITCH, 2008).
Outras situações refletem a profunda influência das redes de poder de base religiosa influenciando ou, diretamente, patrocinando as atividades de Inteligência. Talvez o maior exemplo desta dinâmica seja a situação do Oriente Médio:
O palestino Mosab Hassan Yousef tinha 18 anos quando virou informante do serviço secreto de Israel, o Shin Bet, após ser preso por porte de armas. Sua intenção era se fingir de colaborador para se vingar dos “inimigos”. Hoje, aos 32, ele dá graças a Deus por ter mudado de idéia — e se tornado um espião do país que odiara. Convertido ao cristianismo, por uma década repassou informações que culminaram na prisão ou morte de líderes palestinos e evitaram o assassinato de israelenses, entre eles o atual presidente de Israel, Shimon Peres. Isso só foi possível porque Yousef é filho de um dos sete fundadores do grupo extremista islâmico Hamas, o xeque Hassan Yousef, que atua na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e é conhecido pelos atentados suicidas. Nesta entrevista à ISTOÉ, por email, ele fala sobre sua traição — revelada no livro “Filho do Hamas” (Sextante), que chega ao Brasil após causar polêmica no mundo todo —, bate pesado no Islamismo e diz que revelou sua identidade para mostrar a seus conterrâneos que a liberdade é possível. Yousef vive na Califórnia, Estados Unidos, mas espera um dia voltar ao Oriente Médio onde, provavelmente, seria assassinado. Foi ameaçado de morte pelo Hamas e renegado pelo pai, que está na cadeia. Mas ele acha que está cumprindo sua missão de alertar os compatriotas: o Islamismo é “a maior mentira da História.” “Eu já quis matar judeus, mas me orgulho de dizer que hoje meus melhores amigos são judeus”, contou. Combater o que chama de “ideologia do ódio” seria fundamental para o sucesso de qualquer projeto de paz na região: “O Deus do Islã representa ódio e tortura. Ele ordena a morte de todos os que não acreditam nele”. Para Yousef, nem a criação de um Estado palestino nos territórios ocupados colocaria fim aos conflitos (ISTO É ON LINE, 2010).
Independentemente de tal situação expressar certa “propaganda” de um dos lados da história é indiscutível que a realidade no Oriente Médio é feita de incompreensões, radicalismos, armadilhas e as mais diversas situações típicas de uma atividade de Inteligência permeada de interesses políticos, estratégicos e religiosos.
4.3. OUTRAS INFLUÊNCIAS NAS ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA
Além de possíveis influências políticas e/ou religiosas, outras vertentes podem comprometer as atividades de Inteligência enquanto atividade estruturada. Até mesmo entre os membros da própria Comunidade de Inteligência[7], determinadas vaidades são inevitáveis:
O desprezo demonstrado pelas agências “duras” – o NSA, a GCHQ – em relação às “brandas” – a CIA, o SIS – não pode ser mais bem ilustrado do que por meio da história, tantas vezes recontada, dos espiões de Cambridge no início da Guerra Fria. Donald Maclean, Guy Burgess, Kim Philby, Anthony Blunt, John Cairncross e os que os rodeavam eram jovens elegantes de boas famílias, educados em escolas caras e universidades famosas, que foram seduzidos, pela lógica retorcida do marxismo, a tornar-se agentes soviéticos antes de entrarem para o serviço diplomático britânico ou para serviços de inteligência. Eventualmente, após 1945, todos se tornaram suspeitos e três deles, Maclean, Burgess e mais tarde Philby, desertaram para a União Soviética em meio a um ruidoso sensacionalismo da mídia. Causaram grandes prejuízos às agências em que trabalhavam e à confiança entre os estados Unidos e a Grã-Bretanha, que levou muitos anos para ser restaurada. Com efeito, durante um longo período os norte-americanos mantiveram a opinião de que os serviços britânicos de inteligência eram fundamentalmente falhos, e mesmo corruptos, e só depois de muito tempo, quando os próprios norte-americanos sofreram uma série de graves quebras de segurança dentro da CIA e dos serviços de inteligência militar, cometidas sabidamente por agentes motivados por ganância, e não pela ideologia, as relações entre as duas comunidades de informação voltaram a níveis estáveis (KEEGAN, 2006, p.397).
As agências citadas são: National Security Agency – NSA[8], especializada em Inteligência de sinais e criptografia; sua congênere inglesa, Government Communications Headquarters – GCHQ[9]; a Central Intelligence Agency[10]; e a também congênere inglesa Secret Intelligence Service – SIS[11], também conhecida como MI6.
Além da questão da corrupção e da influência de concepções ideológicas pessoais, o texto chama a atenção por revelar certa rivalidade entre determinadas agências que primam por um determinado modus operandi, como é o caso da americana NSA e da inglesa GCHQ, nas quais o escopo está na interceptação e decodificação de mensagens enquanto que a CIA e a SIS trabalham, dentre outros meios, com agentes e trabalhos de campo. Como lembra Keegan (2006, pp. 396-397) “não há rivalidade mais intensa do que a que existe entre os serviços de inteligência que, por meios diferentes, trabalham do mesmo lado”.
Ora, e aqui cabe uma observação: tal situação deve influenciar nos resultados de umas e outras. Considerando que a atividade de Inteligência tem por premissa a reunião do máximo possível de dados e informações para que a análise seja a mais fértil possível e, consequentemente, a produção de conhecimento seja profícua, situações de rivalidade em que há disputas deste tipo dificultam a colaboração entre as agências e o compartilhamento desejável para maiores eficiência e eficácia.
Outra situação na qual os mecanismos de Inteligência não foram suficientemente eficazes ou não foram levados a sério foi no episódio da Guerra das Malvinas ou Falklands, em 1982. Um conjunto de ilhas desde o século XIX disputado pelos ingleses e argentinos, tem uma população exclusivamente britânica (e que pretende continuar assim) embora geograficamente esteja, proporcionalmente, bem mais perto da Argentina.
A Grã-Bretanha havia muito estava acostumada às reivindicações da Argentina quanto às Malvinas, e não levou a sério seu renascimento entre 1981 e 1982. As negociações se deram nas Nações Unidas, em Nova York, sem caráter de urgência, e os britânicos consideraram razoável a disposição dos argentinos. O que não sabiam, contudo, era que a junta liderada pelo general Leopoldo Galtieri já resolvera organizar uma invasão o mais tardar para outubro de 1982 (...)(KEEGAN, 2006, p.354). .
No entanto, o conflito ocorreu antes, em abril de 1982 as ações bélicas foram até junho do mesmo ano, com a rendição da Argentina. Várias vertentes para o episódio foram discutidas. Uma delas é que a Ditadura argentina resolvera fazer das Malvinas (ou Ilhas Falklands) um símbolo de patriotismo para encobrir os diversos problemas internos. De uma forma ou de outra, a Inteligência dos dois países erraram: a da Inglaterra por ter avaliado mal a capacidade de mobilização argentina. E a da Argentina por achar que a Inglaterra não seria capaz de mobilizar seu poderio militar para rechaçar a invasão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Atividades de Inteligência sempre permearam as atividades humanas, seja de forma empírica e menos estruturada, como há notícias desde os primeiros tempos da História, seja de forma organizada e estruturada como produção de conhecimento estratégico, praticada pelas mais variadas instituições – públicas ou privadas – nas últimas décadas.
Ligada à Gestão de Conhecimento e fruto da gigantesca quantidade de dados atualmente disponíveis, as Atividades de Inteligências praticadas contemporaneamente tem o objetivo principal de filtrar parte deste oceano de dados, canalizá-lo para os interesses fundamentais da organização e produzir o conhecimento capaz de subsidiar decisões estratégicas. Evidentemente que estes mesmos princípios podem ser aplicados para objetivos menos abrangentes, como aqueles exarados dos níveis tático e/ou operacional das organizações. Mas, o mais importante, é que tal processo se constitui em bases técnicas, apropriadas para a finalidade e que exigem treinamento qualificado para o seu bom desempenho.
O pessoal de Inteligência tem essa perspectiva. Sabe que a busca da verdade, desenhada pelos procedimentos universalmente aceitos como de Inteligência, precisa de determinadas vertentes também estabelecidas no processo. Uma delas é o princípio da Oportunidade. Não adianta muito um conhecimento completo a respeito de determinada situação se tal conhecimento não puder ser utilizado de forma tempestiva. Muitas vezes saber que em tal localidade há um projeto criminoso secreto que pode representar um perigo para a sociedade ou o país pode ser milhões de vezes mais importante que saber que naquela localidade há a produção de um artefato explosivo com todas as suas características bem estabelecidas, depois que o projeto virar realidade. A informação do projeto pode ser útil para que as forças de segurança possam agir previdentemente. Detalhes maiores de todo o artefato explosivo, se concluído, podem não ser tão úteis, uma vez que a ameaça da utilização do artefato é muito maior.
Portanto as Atividades de Inteligência possuem as suas especificidades. Contudo tais especificidades devem originar-se da essência da atividade. Não podem ser resultado de influências oriundas das diferentes redes de poder que a Inteligência assessore.
Influências políticas, de motivação pessoal e egoística ou de motivações escusas de todos os gêneros devem ficar de fora das atuações da Inteligência.
Os gestores responsáveis pelos departamentos de Inteligência de vários focos devem deixar claro que a produção de conhecimento estratégico é uma atividade que precisa atender tão somente a seus preceitos de qualidade na confecção. E para bem cumprir este mister algumas recomendações podem auxiliar:
a) O pessoal de operações deve ser o mais isento possível de todo o contexto da operação. Aqui a regra da departamentalização precisa ser observada em grau máximo. É a forma na qual o material, que foi objeto de busca, chegar sem quaisquer influências e/ou direcionamentos para o pessoal de análise;
b) Os analistas precisam ter a ideia de que o contágio com os aspectos políticos ou pessoais podem representar uma influência desnecessária e perigosa para a análise de Inteligência. Tal contágio, consciente ou inconsciente, deve e precisa ser discutido constantemente entre o pessoal de análise para se constituir em antídoto permanente de contextos que prejudiquem o trabalho técnico da análise;
c) O gestor de Inteligência, consciente de tais problemas, deve separar ampla e irrestritamente a questão da produção do conhecimento com a sua aplicabilidade. A departamentalização como princípio fundamental, deve ser colocada constantemente e de forma sempre inequívoca. A produção do conhecimento não deve ser iniciada já visando quaisquer interesses que não seja o próprio conhecimento. Não se inicia a Atividade de Inteligência com um argumento tipo “precisamos saber alguma coisa que incrimine tal fulano ou tal organização”... Inicia-se a produção do conhecimento buscando identificar quem são “os responsáveis por tal comportamento ou atividade indevida ou criminosa”... Desta forma, cabe à Inteligência tão somente conhecer e disponibilizar tal conhecimento para quem tem a responsabilidade de decidir... Mas, a atividade precisa ser permeada e orientada por diretrizes éticas efetivas para não ser utilizada de forma distorcida e inadequada. Os profissionais de Inteligência são especializados e não podem colocar suas técnicas e habilidades a serviço de interesses escusos.
Finalmente, como uma última consideração, é necessário lembrar que as atividades de inteligência são atividades humanas e passíveis de uma série de interferências, erros e omissões. Cabe ao gestor estabelecer, cada vez mais, instrumentos de controle adequados para que os profissionais possam errar menos, visando – sempre – aperfeiçoar a busca, a coleta, a análise e a produção do conhecimento mais adequado para o cumprimento da verdadeira missão da Inteligência: a proteção da organização e dos integrantes a ela ligados. Se for um país, a Inteligência de Estado e de Defesa protegendo seus habitantes de perigos internos ou externos. Ou ainda, se for a Inteligência de Segurança, a proteção da sociedade de grupos e ações criminosas. Se for uma empresa ou uma organização qualquer, sua planta, seus segredos industriais ou comerciais e seus funcionários.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
[1] Curveball foi o codinome de um informante, de origem iraquiana, que foi cooptado pelo serviço secreto alemão.
[2] Texto original: Rafid Ahmed Alwan’s charges that Iraq possessed stockpiles of biological weapons and the mobile plants to produce them formed a critical part of the U.S. justification for the invasion in Spring 2003. Secretary of State Colin L. Powell’s celebrated and globally televised briefing to the United Nations Security Council on February 5, 2003, relied on CURVEBALL as the main source of intelligence on the biological issue.Tradução livre feita pelo pesquisador. Parênteses do pesquisador.
[3] Safe Haven, ou “santuários terroristas” é o termo pelo qual ficou conhecida a região propícia às atividades terroristas. Tal conceito é, principalmente, debatido pelos pesquisadores Michael Innes e Richard Jackson.
[4] Satiagraha é o nome dado a uma operação desenvolvida pela Polícia Federal Brasileira contra corrupção, desvio de dinheiro público e lavagem de dinheiro, ocorrida em 2004 que culminou com a prisão de banqueiros, diretores de bancos e investidores. O termo foi utilizado por Mahatma Gandhi, na Índia, e quer dizer a “firmeza da verdade” (Nota do Pesquisador).
[5] Conforme Peter Drucker, na obra The effective executive. Harper Collins Publishers, 1993.
[6] The Entity. Five Centuries of Secret Vatican Espionage. New York City: St. Martin Press, 2008.
[7] Comunidade de Inteligência é a expressão utilizada para se referir às agências e aos agentes de Inteligência que compõe uma determinada área ou segmento e que trocam dados, informações e conhecimentos entre eles próprios (Nota do Pesquisador).
[8] Página oficial: http://www.nsa.gov/
[9] Página oficial: www.gchq.gov.uk
[10] Página oficial: https://www.cia.gov/index.html
[11] Página oficial: https://www.sis.gov.uk/